Compreendo o mundo dentro do teu mundo semeado no som e na carne da alma. Compreendo invisível na noite os trechos do corpo e as roupas do sono. À frente do sal do mar infesto as minas com sombras e luz, desligo as dores dos sumos da vida, resgato nas letras a cor da manhã.
Na hiperestesia dos factos o teu amor sem rival descobre novas partituras novos andamentos no Cristo que dorme na luz que abre caminhos nestes tons sonoros e chora nos braços em que estalam raízes plantadas no centro dos astros da linfa.
O cheiro a madeira queimada e o gosto a pó na boca e nos dentes. As pernas e os braços pesados. A cabeça a vaguear nos sonhos profundos do outono e o Cristo interior a nadar entre as algas das ondas. O guerreiro desarmado, com todo o poder nas mãos, a dizer coisas incompreensíveis no jardim ao lado. O retrato amassado junto à janela e o medo a pairar lá fora, no nevoeiro inerte. A arte da ligação em todos os objetos e o bruxo da fé a revelar segredos encostado ao ouvido, sereno como um cão. A vida a deslizar por entre os dedos inchados. Calculo o que dizem os mortos. Reclamo por tudo e por nada. Entro frenético nas chagas dos vivos com o fogo da carne. Pelos arredores, durante as noites de verão, apenas os bichos rastejam nas mentes cansadas. Apenas o ar esganado sufoca no escuro. Penso e não sei. Sei mas não penso. É o vento da loucura a rondar voraz pela vizinhança.
Doem-me as mãos ao escrever. A pungência da noite intercalada na carne estende o anseio por esse momento em que este garrote seja o sabor das fontes, seja o ferro dos dedos, as artes talhadas e o carbono expirado nas noites, nos dias.
Passo a passo cantando através do coração denso do universo. O poderio dos sonhos recita alinhado pelas traves do teto. Sou os braços da vida, os açúcares da seiva, o palmilhar quântico. Venho e vou como um homem nu, como uma ilusão crua. Passo a passo faz-se este trajeto, na carne no sangue e nos ossos.
Guarda o teu medo para as horas fundas diz a minha aura coada. Nos joelhos os metais cruzados, na longa força do braço os meteoros brancos, no deserto da espécie os sobressaltos do mundo. Cabisbaixo trago esta oferenda na serenidade. Para cá desta porta a luz acesa.
Sonha bicho carcomido, reage à lança. Cá dentro, neste sonho de mundos entregas pó e sombras. Comes as palavras frias nos cunhos da pedra. Raias suplente as orlas das muralhas. Estacas as bandeiras das derrotas densas. E cravo a cravo, alambique e trono, leve distraído linhas e diapasão, estão os teus resgates, os teus ossos frios, a aurora da noite e as horas marcadas.
Evasão serena este despertar de marujo e esta sabedoria endócrina. Um apontamento, um interior em branco, uma amizade pura. Agrilhoados ao éter levantais ferros, vejo-vos partir destas cadeiras de pedra, deste mundo a dois. Voa sustento nas ondas e trabalho nos braços. Vogam névoas brancas e vagas a metros e metros e metros. Soa a voz invisível no fundo da terra.
Os braços profundos do amor abrem alas através do aglomerado do cosmos. São pedra, são sal e vida. Nauta resgato-te os ossos e a carne emersos na memória dos dias destes caminhos quânticos.
A ervaria entrelaçada pelo pátio dá aos travões de granito um aspeto agradável. Nos ranhos da manhã declamo com o coração entretido a contar momentos em voz de chão. Na aura nívea dos tormentos dos textos a pobreza da terra, no encanto da guerra das mãos estes homens quebrados, no limo dos poros da carne o rumor das marés.
Isoladas no Senhor e na Terra estas mãos ganham trabalho aqui perto num mundo escondido. Sou eu que no sono-vida da razão me faço criador e criado, luz realidade e sombra. Só na tua compreensão aberta meu amor deponho as minhas armas, só neste trabalho ganho me crio criado.
Do núcleo desta arte magra emanam os sentidos noturnos e as trovas assimétricas recuadas no semi-tempo das horas enquanto recupero na lentidão da escrita e gesticulo com as mãos sujas de letras.
As palavras do agora recaem distraídas e poderosas no jogo do palato e das gengivas de ferro. Desenrolam-me as frases desfeitas na ausência. Estou consciência e treino iniciado no ritmo fincado na pele. Que reconhecimento este, que liberdade. Nas mãos geladas mantenho todas estas divisões, toda esta terra.
Por baixo dos pés o solo adormecido da mente, os aros gelados dos catres queimados. Nas ênfases da minha língua o deus da pobreza. O som do piano ouve-se distintamente através das paredes. Estás aí, minha querida? Eu estou aqui com as chagas elétricas e na cegueira leitosa deste momento reconheço a tua voz no elemento da voz.
Na gaveta do meio guardo todas as nossas coisas. Os campos que lês, os laços que abro, as veias dormentes, a luz da lareira. No meio dos sonhos contados guardo os sons e o frio dos ossos. A pele que liberta a lição. O tempo entretido na dor. A roupa espalhada no chão. No centro de tudo esqueço o momento. Relembro apenas o prisma na sala de aula, a levitar na escuridão.
Tornado à cave como um animal o teu coração rasteja pela penumbra. É o deus das borboletas que enche toda a escuridão, é o sumo dos ossos. Ouço-o no ranger das calhas e nos carreiros secos. Homem cru, a alva traceja. Larga os trapos, some sereno. Eu espero sempre nas esquinas atento ao mundo.
É secreto este pensamento aberto de par em par. Nestas mãos que macias alisam o calor do outono. Neste outono em que alegre cantas de cadáver limpo. Neste chão onde sulcado sonho estas cartas de amor.
O caminho de terra batida, ladeado de ervas altas e de pequenos troncos de canas e catos, leva-me até ao cimo de um dos pequenos morros das terras do meu pai. O transe do arvoredo e a respiração lenta da folhagem em redor da casa entranham-se no mundo e na voz. O vento sussurra no pânico dos vivos que cantam no cemitério contíguo e o meu olhar, trajado de desilusão e artes, percorre as lágrimas dos mortos junto aos carreiros e aos esgotos. Aqui estás tu neste caminho antigo. Aqui estás tu dentro dos meus braços. Levo comigo o pesado andor dos teus passos lentos e os leves pesadelos da voz que sussurra… aqui estás tu.
Este meu momento perfeitamente arrumado contrasta com os pensamentos vadios agrafados nas portas e com a leitura espalhada pelas mesas e pelo chão. Na harmonia profunda deste silêncio aterrador compreendo todas as coisas que me transportam até junto de ti, toda esta tinta marcada no sebo das folhas, todos os rostos virados no mesmo sentido.
A música suave do velho rádio do meu pai não interfere com o mundo. Desliza através das paredes e pelo silêncio dos quintais. Penso em ti e na voz sem harmonia que se arrasta em tua busca pela escuridão. Estendo o incenso compacto pela quântica dos momentos na guerra das vozes e, aplacado por esta luz acesa, avanço destemido pelas tuas palavras dentro na bruma intensa da realidade.
No torpor do transe da madrugada encontrei-te ao lado dos pensamentos e da voz carnívora. Inteira decifravas todos os caminhos. Só com a minha companhia, eu e a solidão saímos do meu mundo e entramos no teu entrelaçados no rumor surdo numérico.
Chove há cinco dias. O núcleo do medo perdeu raízes com as sonoridades do inverno que me cercaram o coração junto contigo. Todas as minhas veias resvalam neste colete de forças, nesta simbiose de carne, neste sim suspenso. És tu que sonhas as palavras vivas. És tu que estendes as frases sentidas. És tu que estás.
As cortinas que separam a sala do átrio, enrugadas e sujas nos rebordos, amortecem a luz do entardecer. O meu cansaço mantém-se silencioso e amparado pela cadência milimétrica do pousar das gotas de chuva no alpendre. Neste início de outono são as tuas mãos que me recordam a vida. Os teus gestos que me enquadram no tempo. A tua voz que me chama do mundo.
Atiçada pelo carvão da língua destas folhas devoradas no azul-ferrugem, a tradução separa o animal sombrio das luras de pedra. Traz pela mão as águas dos campos e os traços dos corpos. Restaura a língua marcada e as entranhas nuas. Desvenda a harmonia cega no topo dos crivos. Nesta tradução onde a tua voz que canta...
Segura meu amigo este barro no óleo das forjas. Estes poemas às portas libertam-te as mãos e o amor e a vida nas bocas dos sonhos. Sou eu que te leio estas folhas do sebo que corre da arte sendeira. Engulo estas terras erguidas e o ventre manchado que dorme deitado. Hoje e ontem meu amigo, igual sempre igual.
De encontro às paredes calibradas dos argumentos, as garras firmes do tempo apoiadas no septo nu. O próprio homem animal e besta erguido na destruição. A arte corrigida a tempo nos canais entendidos. Só tu e eu no ar macio da tarde que nos embala.
Liberdade não sou eu nem a pedra. Reduzido a este coração casebre recomponho-me contigo na luta e retrato todos estes minutos na névoa dos dias de braços abertos.
Arte, meus irmãos. Palavras e morte. Abram as portas, fechem as portas, renasçam dos sonhos. Lado a lado neste abraço inóspito, nos gritos da boca, no agora marcado. Guardem estas minhas sombras no pó dos sapatos e estes meus pedaços no seio das turbas. Arte, meus irmãos. Atentos. Gradualmente, no renascer e na carne, atentos meus irmãos.
Nas mãos deste segredo está este segredo guardado para a expansão do amor. Longe do renascer e dos cortejos da vida caminho como um monstro desligado e para os que sonham sou engolido por uma árvore crua nas letras dos dedos. Deixa as tuas portas abertas e esta voz na expressão. Deixa os teus braços nos braços e o teu lugar alinhado com estas linhas no mundo.
O sustenido da noite. O breu ancorado na tua densidade. O meu navegar bêbado pelo incêndio e a tua voz nas partículas. Os aracno rumores da violência através das paredes, a aurora ainda longe e os grilhões quebrados. Serenas, as tuas emissões e a tua viagem com os teus e os meus passos muito lentos como num sonho de vozes. O latejar da tua carne no meu coração e os teus beijos salientes rumo ao fim do infinito.
E o velho hábito da guerra no coração de pedra. Como estes dedos ósseos esmagam a vida, meu amor, entre os cânones daqui e as chuvas que passaram. Só os pássaros mortos nos campos de lousa.
O submundo no livro aberto encerra um capítulo de entranhas. Traz os cheiros guardados num passado de terra e linhas. Trabalho o meu coração com canga e suor, releio estas frases sebosas a medo na noite. Na luz suave da tua voz todos os livros devorados se fazem cinza.
Por vezes o grito espera. Encontra o infra sagrado nas vísceras cruas e o amor subsónico nas traves do leito. Por vezes a surdez toma posse e a vida abre asas nos troncos da fé. O grito suspenso relata os harmónicos e tu escutas. Sempre atenta.
Cruel esse amarelo que dispara em direção ao levitar do pó dos insetos. Cruel esse amarelo e esse esvoaçar atraído à gravidade anulada destes socalcos. Qual sentido dissipado das bestas regressa pelas origens do voar à melancolia das mãos? Qual besta regurgitada incentiva poetas?
É a tarefa e a agonia das horas nas mãos na boca e na cabeça, o sonho inacabado e o fio colorido a conduzir-te acordada. Eu, sentado neste cepo cerrado conto os minutos das memórias.
Ligada ao infinito a tua voz gravada no horizonte de pedra a bailar nas águas, nos traços do céu e nas areias mornas. No abismo das tuas mãos separo os elementos, distraído pela atenção à tua pele, aos teus poros, aos teus átomos e ao Deus alforriado que ocupa as praias.
Na fímbria da floresta os sonhos acesos meditativos e frescos na raiz do entardecer. Mãos nos bolsos, ombro encolhido, tu ao meu lado. As ervas húmidas, a minha pele seca, as tuas mãos nobres, o solo e o ventre, a terra. Ouço-te que vens do centro do mundo com os braços abertos. Os meus nos teus preparam a partida... sempre e agora.
Da aorta até à terra seca do cosmos espalhas as tuas palavras meu amor, através do tórax entreaberto à luz mortiça dos candeeiros. A literatura sedosa das tuas mãos e o adjetivo salgado da força boiam na tonalidade leitosa das janelas e o magma da carne, despido até ao invisível, contorna a tua expressão renascida e a minha impressão pungente.
Noite. A palavra densa corre pelas veias. Na porta do cérebro todos os teus átomos chamam pelo universo da carne. Noite. Acordada dentro dos sonhos pesquisas-me poro a poro. Tu, pura como o sangue na lucidez das sombras. Eu, como o sal, nas tuas mãos esguias retornando à terra.
Agarro com as duas mãos os teus sonhos, as gotas de água morna e as folhas de papel. Estou a ouvir-te no centro. A ti e à luz, na mecânica do tempo e das retortas queimadas. De braços abertos detono a cabeça do cão e com as portas abertas ditas o que te apetece, coroada de palavras e terra.
Santa carne. Golpe de faca. Quisera eu que o teu coração queimado, no solo rasgado da primavera, salvasse os palmos de terra que piso em botas de tropa dos claustros e dos lamaçais. Sobe querida até junto de mim. Do antro à vida. Enterra os teus símbolos de tinta da carne na minha carne. Acorda em alegria e sede e morre livremente nos meus braços estendidos pelos protões dos teus braços. Nos teus olhos sem cor o arco das cores desfaz-se em sonhos. É o limite perpendicular do teu transe esquemático, a minha cólera, a tua força, os meus ombros caídos, as tuas asas de palha.
Com os rins atados pelo couro acordo violentamente ao teu lado. Não tens nem Deus nem Fé, a carne tatuada e uma réstia de saliva. As minhas barbas sujas são a tua única alegria, o repouso das tuas mãos que desenharam de cima a baixo esta casa de pedra, esta morada de carne e este rosto invisível. Sou amargo ao longo deste acordar violento no espasmo dum animal esfaqueado na escuridão, enquanto recitas um dos velhos poemas que eu tinha guardado na gaveta de cima.
O ADN rústico que me alimenta a longa noite de verão, assinado desde o primeiro dia, procura tudo e encontra tudo nos teus lábios sedosos e no teu olhar de ferro, na tua essência mecânica e na fuligem da aura.
Caminho com gentileza através das ruas desertas. Os passeios empedrados e o alcatrão da estrada fumegam sob um verão quente e sombrio. Trago nas mãos o sangue da guerra e no meu sangue Deus e a Terra. Caminho através do invisível rasgado com os pés sujos e cheios de calos, os braços nos braços, a roupa da vida, os ossos marcados e o tempo estendido. À tua espera caminho gentilmente com o meu arsenal bélico na voz estragada. Agora e sempre.
Agora só cá estamos nós os dois e o silêncio da memória. Só cá estamos nós e estas construções que pelas minhas e pelas tuas mãos foram derrubadas e reerguidas ao absorvermos calmamente todo o medo tântrico nas estações chuvosas.
O sono pesado chegou na praia com um sonho profundo, enrolado nas areias mornas carregadas de sal e algas. O travo da fé, alojado na garganta e nos pulmões abertos, recita em voz baixa um soneto antigo. Adormeço. Acordo. Adormeço de novo. Vejo-te ligada ao tecido negro da noite, pintada de amarelo e rosa. Junto a ti, três pássaros castrados com um piar sereno levantam voo em direção ao nada e lá longe, quase indistinto, um grupo de dez vultos brancos entra e sai do sonho por uma porta aberta. Estás-me a dizer coisas ao ouvido, mas a força deste sonho abafa as tuas palavras na melodia dos teus lábios grossos. A inconsciência da luz destrava a imaginação sombria. A areia morna embarga o sal das ondas. Acordo. Adormeço.
Cobertos de rebentos benignos, os muros altos das propriedades traçam um delineado impressionante através de todo o vale. Chove torrencialmente. Ao longe ouve-se o apaziguador ribombar do trovão e o repicar do sino da capela de São Julião. Dentro dos muros os homens vão-se afundando na nostalgia irregular do sangue, enquanto o medo das trevas os envolve como um animal sequioso e neste meu posto de vigia, entrelaçado nas raízes do mundo, vomito o relatório solicitado pelo ladrão que passou impercetível pelas redondezas.
Recordo tempos antigos estagnado nesta sala fechada, sob o bafio dos móveis e o teto queimado. Recordo a toalha estendida, os panos rasgados, as nódoas nos vidros e as pratas rachadas. Recordo cada livro pousado, a ciência suspensa, as conversas tardias, a noite profunda. Em redor da luz obscura da memória, o olhar bruto dos invisíveis e o coma dos vivos.
Tenho aqui o coração dum velho pescador para te deleitar em veludo e cinza. Sufoca na lama a tua condescendência e as balas perdidas, esse pensamento sombrio e a dormência dos sonhos. Repara como este fogo molhado que crava os dentes nas letras perdidas se estende na arte dos caminhos, por onde passa toda a poesia que te escrevo enterrado na vida até ao pescoço.
Ao lado dos túmulos deles, espetadas no chão, duas flores amarelas murchas baloiçam com as lufadas momentâneas que vêm do sul. Dois seres perdidos caminham de mãos dadas pelo relvado junto ao bosque. Não procuro nada. Estou apenas de visita e trago comigo este alfarrábio que me sufoca e estas folhas cobertas de traços de lápis. Na memória as visões de papel, o retrato acabado e o sexo nas trevas aceso por dentro.
Não estou cansado. Apenas triste e desiludido. Como um deus entrelaçado nos ossos dum ser humano, esta árvore continua a crescer na filosofia bruta que soa nos tímpanos como o ladrar dum cão. Coberta de cascas contorce-se pelo ar abafado da noite e entrega os frutos maduros e a folhagem verde no espaço apertado entre o paraíso e o torpor da droga. Não cresce só para mim. Cresce também para ti e para ti e para ti.
Na violência das minhas palavras cruas rasteja a voz dos teus lábios. São esculturas que talho só para ti nos meus momentos de solidão. São quadros que pinto com arte, com sangue, com fome, com vida e com sal. São poemas que rasgo ainda brancos na luz da manhã.
Na tua expressão de carvão guardo a memória a correr profunda pelo coma inerte. O ar e os traços, o negro das veias e as armas de guerra. A literatura tosca nos teus lábios de tinta e a voz da manhã nos teus olhos fechados. É nesse naufrágio de abraços que me mantenho na linhagem dos homens que te querem inteira.
Agora que acordaste mantém-te aí sentada. Voa secretamente nas tuas velhas asas de pássaro de cartão. Queima o teu tempo no tempo e nas mentes prostituídas pela insónia e pela brutalidade de todas as mãos em sangue. Destrava a linguagem rude e a desatenção visível, porque com as minhas velhas asas de pássaro de cartão, também eu acordei e estou aqui sentado e atento, a voar secretamente no tempo queimado.
O farrapo do coração, já velho e elegante, acende-se para tudo o que é antigo. Emociona-se ao ver passar coisas a que ninguém dá valor. Faz crescer os braços como raízes por todos os recantos das coisas e, no epicentro do medo, cresce conforme a estética do mundo. A aura eletrónica e hostil dos objetos pousados por toda a parte é esfaqueada repetidamente pelo perdão dos sonhos mudos que reconstroem a realidade passo a passo. É quando à vista de todos o invisível se expande. É quando a razão definha e o coração de carne distende a musculatura livremente através da filosofia endócrina dos dias. É quando todos estão em sintonia e eu desligado.
Trago dentro da dor um mundo de cinzas, a textura das pedras e o vinil do metal das facas. Passo dias seguidos a escutar os rumores dos sons surdos do mundo, entranhados em todas as coisas. Os meus braços circundam-te, meu amor. Ainda usas o mesmo chapéu. O único que te dei. Confessei-me nesse dia, apesar do aspeto do tempo. Entreguei-me ao chão e ao silêncio cego da esfera da vida, com estas palavras que me esmagam as mãos. O dia, o chapéu e a vida, imutáveis na sua essência, transformaram-se só para nós, embora não tenhas visto. Foi perto da praia, junto ao muro que separa a estrada do arvoredo.
Viajo por atalhos sombrios com os meus dois irmãos e nunca nos desencontramos. A harmonia e a subtileza da profundidade a que chegamos os três, encharcada na sonoridade poética do álcool da noite, sufoca-nos com a verdade poderosa que une todas as partículas da carne. É nestes momentos que levantados nos encontramos sempre na evidência do invisível.
O tédio do abismo e da dor apagada reclama-nos lentamente pelas veias da terra e como drogados, no seio do nada, só a sábia miséria nos abriga e sustenta, atiçando a imaginação a preto e branco nas volutas mortas do cérebro com a imponência das horas.
Recordo vagamente aqueles tempos. O essencial. As casas a preto e branco, as plantas cuidadas, a multidão, o cerco. A arte. O verniz das madeiras. A passarada nas beiradas dos telhados. A roda dentada. A arte… a arte. Os artistas. Chegavam até mim de mãos fechadas e palavras. Um resto de saber cru escapava-se-me através dos poros e dos dentes podres. É uma identificação minha, uma paranoia oculta, um medo entendido. O celuloide queimado e o papel amassado, eretos sobre as andas da inferioridade. Sempre casmurro e discreto. O álcool bêbado nas sarjetas da manhã, o sol opaco por cima das árvores do monte e o mosteiro, lá em cima, esquecido no tempo. A arte e os artistas. Os muros em volta. As flores no alcatrão e a cal em pedaços. Recordo vagamente…
Sabes que agora, depois de tudo ter acontecido, também eu cravo as minhas garras na terra. O meu coração, como o fole dum velho acordeão, derrama toda a sonoridade no húmus destas folhas rasgadas e o teu rosto emerge do oculto com a voz aberta a dizer pensamentos desconexos que se diluem na hipnose do sangue, enquanto eu vou farejando como um caçador os rebentos dos teus poros fechados. E nesse encontro, como no perdão profundo da carne, o restauro com a luz trémula da candeia a boiar na escuridão.
Acabo de chegar. Não venho de lado nenhum. Trago no bolso um naco de pão cozido por mim. Dias atrás, a fome e o medo rondaram todas as entranhas de cada ser vivo, todas as paredes de cada cubículo. Estive lá e não estive. Vadiei pelas sombras sem nunca me perder. Trago comigo um guia que me indica todos os caminhos, poderoso como um feiticeiro. Nunca dobra uma esquina que não desembainhe a espada, pesada como o pecado. Nesses dias o medo rondou, mas eu não tive medo. Nesses dias a fome rondou, mas trago sempre no bolso este naco de pão.
Dá-me esses cancros colados na tua pele e esses teus ossos carbonizados pelo sabor dos repastos, que com os tentáculos deste Cristo antigo e estoico como um animal com escamas acabado de sair das profundezas da lama, vou-te libertar com corda e chumbo. Espero pelo cair das asas e pelo acordar da luz, silencioso como um carneiro. Espero sempre por ti e como já te ameacei, vou entrar pela tua casa dentro com o meu exército, abrir as portas e as janelas de par em par e libertar-te desses grilhões que te seguram às pedras.
No calor intenso da manhã desenho na tua cara círculos e traços com um lápis preto. Sinto no teu pescoço e no teu peito nu as veias inchadas. Vejo no teu espírito afogado o sangue da carne. O génio que cultiva a dor e o carrasco que dorme, as bandeiras na borda da água e a ira dos homens, o vão que abriga a espada e os campos de milho. E lentamente, governado por estas mãos de que me vou esquecendo, recordo. Recordo-te a ti e a todos como tu, ainda bêbados pela manhã, amontoados entre o lixo dos quartos. Recordo os vómitos crus e os vestidos de malha, a minha esfera mental a vaguear por entre as paredes brancas e pelas fendas dos tetos.
Iluminado pela escuridão da sala, recordo. Anulo vagamente as raízes do ódio que sobem pelas paredes vazias e mastigo o ar da manhã sombrio e amargo. Avanço pela solidão dentro completamente desarmado, do alto da minha velhice prematura. A mesa posta de linho, os talheres desirmanados e as cadeiras rotas no tampo. A aura das gotas de chuva e os anéis espalhados no chão. Engulo lentamente o som da terra a despenhar-se no mar e imagino-a a roer a corda que a prende aos homens. Penso em mim como um animal que venceu a fome. Ligo os pontos na escuridão e fujo desarvorado através do silêncio. Procuro-te por todo o lado, mas apenas encontro estas raízes nas pedras que me seguram ao fundo.
O dia, prolongado nas trevas, ilumina todo o alpendre e as flores da varanda. Ouço o riso atroz das bruxas que passam e o piar suave das aves nos ninhos. O tempo não passa. A luz não me deixa. As mãos na cabeça, os livros fechados, o som do arvoredo e o cheiro dos tachos. Só sei que estou aqui sentado. Não sei mais nada. Os meus pés pousados no chão criaram raízes nas pedras da casa. Imagino-te a fugir pelos montes meu amor, com um livro azul debaixo do braço e um cão à esquerda. Vais descalça e com medo que te encontre. Eu também tenho medo. Estou dentro do mundo a vomitar palavras sem tinta. E a fome da vida no braço direito, a força que agarra a caneta vermelha, a dor que percorre o pescoço e a nuca, os passos que dou pelos quartos vazios.
O livro está todo sujo… ardem-me os olhos com o vinagre das letras. Folheio desatento, mergulhado no medo. Lá fora, destacado das sombras da noite, vagueia o cão da fome com passos pesados e rosnar apagado. Folheio lentamente estas folhas sebosas no auge da minha decadência. Sou um ladrão. Estou aqui. Estou a ler e a compreender o que leio. Ardem-me os olhos e doem-me as mãos, os dedos partidos, os golpes das facas. As palavras passam pelos lampiões pendurados nas esquinas, abraçadas a ti, meu amor. O teu nome e os vómitos noturnos são a febre que passou da imaginação. São o real que gravei na carne dos braços e no ódio da mente. São a luz que te cega e este sebo nas mãos, a sujidade do livro e as letras ligadas. Lá fora, nas sombras da noite vagueias tu pela lama das pedras. Espera. Fica mais um pouco porque eu sou um ladrão e estou do teu lado.