Palavras sem tinta
O dia, prolongado nas trevas, ilumina todo o alpendre e as flores da varanda. Ouço o riso atroz das bruxas que passam e o piar suave das aves nos ninhos. O tempo não passa. A luz não me deixa. As mãos na cabeça, os livros fechados, o som do arvoredo e o cheiro dos tachos. Só sei que estou aqui sentado. Não sei mais nada. Os meus pés pousados no chão criaram raízes nas pedras da casa. Imagino-te a fugir pelos montes meu amor, com um livro azul debaixo do braço e um cão à esquerda. Vais descalça e com medo que te encontre. Eu também tenho medo. Estou dentro do mundo a vomitar palavras sem tinta. E a fome da vida no braço direito, a força que agarra a caneta vermelha, a dor que percorre o pescoço e a nuca, os passos que dou pelos quartos vazios.